Da crise à retomada: como pequenos negócios sobreviveram à pandemia e alavancaram a economia de MT
05/11/2025
(Foto: Reprodução) Como pequenos negócios sobreviveram à pandemia e alavancaram a economia de MT
Durante a pandemia de Covid-19, milhares de micro e pequenos empreendedores em Mato Grosso se viram diante do maior desafio de suas vidas: sobreviver. O fechamento do comércio, o desemprego e a incerteza econômica transformaram o trabalho por conta própria em refúgio e, ao mesmo tempo, em aposta de futuro. Cinco anos depois, o cenário é outro — e as pequenas empresas se consolidaram como o motor da recuperação econômica do estado.
Especialistas apontam que essa virada tem relação direta com um conjunto de leis que garantiram ambiente regulatório mais simples, crédito emergencial e incentivo ao comércio local. A soma de fatores fez com que o estado registrasse uma das menores taxas de fechamento de empresas do país durante e após a pandemia.
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Uma pesquisa feita pela Fundação Getulio Vargas (FGV), em outubro deste ano, aponta que empreender no Brasil ainda é um desafio que vai muito além de ter uma boa ideia. Segundo o professor e economista da FGV, Rodolpho Tobler, a pandemia de Covid-19 abriu novas oportunidades, mas expôs entraves históricos do ambiente de negócios brasileiro.
A gente perguntou aos empreendedores qual era a maior dificuldade de empreender no Brasil e três foram os fatores mais citados: carga tributária, burocracia e dificuldade de acesso a crédito
E foi exatamente a resolução desses três pontos que levou Mato Grosso a ser o estado com o maior número de empresas abertas na pandemia, conforme o Ministério da Economia. Para Tobler, qualquer medida que simplifique processos e encurte caminhos é decisiva para o desempenho dos pequenos negócios, sobretudo nos primeiros anos de funcionamento — os mais críticos para a sobrevivência empresarial.
“Quando a gente vê uma região que está tentando reduzir essa burocracia, como foi o caso de Mato Grosso, que está tentando fazer com que cada vez mais as pessoas tenham acesso ao crédito, isso é fundamental para o sucesso dessas empresas”, avaliou.
Atualmente, as micro e pequenas empresas representam cerca de 30% do Produto Interno Bruto (PIB) e mais da metade dos empregos formais do país.
Um levantamento feito pelo g1 mostra que, pelo menos, nove leis aprovadas pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT), entre 2020 e 2025, favoreceram o comércio local afetado pela pandemia da Covid-19 e facilitou a abertura de novas empresas (veja lista abaixo).
Leis aprovadas em benefício dos empresários e empreendedores de MT
Dados da Receita Federal mostram que o número de novos MEIs em Mato Grosso saltou de 38,3 mil em 2020 para 66,8 mil em 2025 (confira no gráfico abaixo). No mesmo período, o total de micro e pequenas empresas ativas ultrapassou 419 mil, representando 87% de todo o universo empresarial do estado.
Embora o crescimento tenha sido expressivo, a analista de Inteligência de Mercado do Sebrae-MT, Amanda Alves, pondera que a mortalidade das empresas também aumentou — um reflexo do empreendedorismo por necessidade e da falta de estrutura inicial. Mesmo assim, Mato Grosso conseguiu evitar uma "quebradeira generalizada" graças à atuação combinada de políticas públicas e apoio técnico.
“Acredito que o principal legado positivo dessa parceria entre o Sebrae e o setor público foi nos eixos de acesso a crédito, capacitação e simplificação do ambiente de negócios. Iniciativas como o programa Cidades Empreendedoras transformaram o ecossistema local e fortaleceram os pequenos negócios”, acrescentou.
💼Negócios que venceram a crise
O g1 ouviu empreendedores dos quatro cantos de Mato Grosso. Eles relataram os desafios para erguer um negócio do zero e o que sentiram após a aprovação de leis que estimularam o empreendedorismo na retomada das atividades.
De doceira escolar a empresária da economia criativa, Roziqueli Tacio, de Cáceres, no sudoeste do estado, representa uma geração de mato-grossenses que transformou a crise em oportunidade. Toda a fonte de renda dela, que vendia doces no intervalo das aulas na escola, se perdeu da noite para o dia quando estourou a pandemia.
Roziqueli começou a empreender na cozinha de casa, com R$ 50 no bolso, e o isolamento gerado pela pandemia foi transformado em oportunidade para crescer como Microempreendedora Individual (MEI). À época, passou a vender por delivery e refazer seu modelo de negócio para sobreviver.
Rozi conta trajetória ao empreender em Cáceres (MT)
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Atualmente, ela se consolidou como CEO e culinarista com o “Delícias da Rozi”, que se tornou referência na economia criativa local com a produção de brigadeiros de pequi.
Em Sinop, no norte de Mato Grosso, Gutemberg Souza ainda carrega cicatrizes da pandemia. Isso porque ele passou 35 dias intubado no hospital com Covid-19 e mais quatro meses em recuperação para voltar a andar. A ideia para empreender, então, veio de uma conversa com um amigo, que sugeriu que ele abrisse uma casa de tempero.
“Eu tinha uma lanchonete de delivery [antes da intubação], e não conseguia comprar produtos de qualidade para fazer meus temperos”, contou.
Há três anos, Gutemberg e a esposa começaram a preparar os próprios temperos, e ele saía para vender em potinhos de porta em porta no comércio.
Gutemberg Souza conta como foi empreender em MT
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Esse ambiente de negócios foi se tornando cada vez mais favorável ao empreendedorismo. No ápice da pandemia, entrou em vigor a Lei Complementar 673 de outubro de 2020, que atualizou o Estatuto Estadual das Microempresas, MEIs e Empresas de Pequeno Porte, o que ampliou os benefícios e simplificou obrigações tributárias. Já em 2021, foi instituída a política estadual de desenvolvimento da economia criativa, estimulando inovação, cultura empreendedora e negócios sustentáveis.
Foi unindo sustentabilidade e criatividade que Claunice Umutina preservou o legado da mãe, que morreu de Covid-19, por meio do artesanato produzido na aldeia Águas Correntes, na Terra Indígena Umutina Balatiponé, em Barra do Bugres, a 169 km de Cuiabá.
Claunice Umutina conta dificuldades enfrentadas para empreender durante a pandemia em MT
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Uma técnica ensinada pela mãe dela agora é a sobrevivência da comunidade. Todos se envolvem no artesanato de alguma forma. Além da produção, os próprios indígenas fazem a venda em eventos e feiras criados para potencializar os pequenos negócios na cidade.
A pandemia potencializou também a discriminação do grupo. “Eu já fui discriminada, ouvi em uma feira: ‘olha, você nem deveria estar aqui, porque lugar de índio é na aldeia’. Fiquei triste, mas pensei que meu lugar é onde eu quiser ficar”, lembrou.
Discriminação essa que Amanda de Paula, de Cuiabá, também aprendeu a encarar sem medo quando decidiu trabalhar com tranças afro. Desde muito cedo, foi ensinada pela mãe a aceitar a própria identidade cultural. Agora, faz disso a sua força e independência financeira.
Com R$ 100 na conta, Amanda começou a empreender, no entanto, trancista não era visto como serviço formal pelo Ministério do Trabalho, que reconheceu a atividade como profissão em julho deste ano. Aproveitando a liberação e a desburocratização do negócio, montou o próprio salão de beleza voltado para cabelos afro.
Amanda de Paula conta trajetória ao começar a empreender em MT
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É recente, também, a criação de uma política estadual de incentivo à micro e pequenas empresas e de atração de investimentos, tanto a lei 12.857 de abril quanto a lei 12.937 deste ano.
A ausência dessa política por tantos anos não restou outra opção à Raquel Vieira senão encarar as dificuldades sem carteira assinada e empreender sempre em parcerias desde que se mudou de Dourados (MS) para Cuiabá.
Raquel Vieira conta como recomeçou a vida ao empreender em MT
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Raquel começou a vida no estado debaixo de uma árvore no Bairro Tijucal, na época, vendendo laranja, melancia e abacaxi, além de peregrinar entre as feiras nos bairros. Durante a pandemia, recebeu auxílio para sobreviver, já que o número de vendas caiu e o movimento sumiu.
Ainda em meio à crise, Raquel abriu dois pontos de venda na Avenida das Torres, um de redes e outro de água de coco, de onde hoje tira o sustento da família.
Já em Primavera do Leste, no sul de Mato Grosso, Eliane Machado também se viu sem alternativas após ser desligada do emprego de carteira assinada e passou a prestar serviços de maquiagem. A decisão deu tão certo que, hoje, ela viaja para a Europa e ao Egito ensinando a técnica que desenvolveu de depilação de sobrancelha com linha orgânica.
Empreendedora Eliane Machado mudou de vida na área da estética
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Esse sucesso não foi sem dificuldades. Durante um curso de aperfeiçoamento em que buscava desenvolver a própria técnica, Eliane ouviu da professora que não levava jeito na prática porque era canhota, e que deveria buscar outra atividade, como cabelo e unha, mas Eliane não desistiu.
Assim que consolidou o próprio salão de beleza, Eliane teve uma gravidez de risco em que os filhos gêmeos nasceram com prematuridade extrema. Um deles morreu três dias após o nascimento e o outro teve uma luta de quase três meses de UTI. Nesse tempo, ela continuou gerindo os negócios de dentro do hospital até receber alta. Agora, Eliane é referência na área de atuação.
A dor de perder um familiar mudou o destino de Klayton Fernandes em Confresa, na região do Araguaia, no nordeste de Mato Grosso. Após a morte do pai, ele e a irmã buscaram empreender no setor de construção civil com a venda de imóveis em uma região que, em 2010, não havia nem escritura.
Klayton Fernandes em Confresa, empreendedor na região do Araguaia
g1
Klayton se tornou presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) da região e agora incentiva pequenos empreendedores a construírem o próprio negócio, sobretudo na pós-pandemia. Ele ressaltou que, apesar do cenário desafiador em razão da taxa básica de juros (Selic), que está 15% ao ano, maior patamar em quase 20 anos, as leis no estado diminuíram a burocracia, tirando essa dor de cabeça para o empreendedor.
⚖️Menos burocracia, mais oportunidade🤝
O presidente da Assembleia Legislativa, Max Russi, afirmou que a Casa atuou de forma intensa durante a crise e que os deputados buscaram assegurar um ambiente de negócios mais desburocratizado e favorável, com segurança jurídica e estímulos permanentes à geração de renda e empregos.
“A Assembleia devolveu recursos ao governo do estado para estruturar a rede de saúde e, ao mesmo tempo, propusemos medidas para preservar empregos e a renda das famílias. Apresentei, na época, uma indicação criando linhas de crédito emergenciais para garantir o capital de giro das micro e pequenas empresas, que foram as mais afetadas pela crise”, destacou.
Da crise à retomada: como pequenos negócios sobreviveram à pandemia e alavancaram a economia de MT
Plaenge
Entre as normas citadas por Russi, estão a Lei Complementar nº 673/2020, que modernizou o Estatuto das Micro e Pequenas Empresas; o Código de Defesa do Empreendedor (Lei nº 11.790/2022), que estabeleceu prazos máximos para licenças e autorizações e reduziu a burocracia; e a Lei nº 12.857/2025, que criou a Política Estadual de Desenvolvimento do Comércio Local, estimulando o consumo regional.
Além disso, os deputados, à época, aprovaram o programa Desenvolve MT, criado pelo governo estadual, que transformou a antiga MT Fomento em uma agência de crédito voltada a impulsionar micro, pequenas e médias empresas.
Essas medidas formam um arcabouço legal moderno e humano, que não apenas estimula o empreendedorismo e fortalece o ambiente de negócios, mas também cuida das pessoas, garantindo que o desenvolvimento de Mato Grosso seja econômico, social e sustentável”
📊Empreender por necessidade, crescer por oportunidade
Impulsionado pelo agronegócio e pela digitalização da economia, o empreendedorismo em Mato Grosso segue em expansão, segundo o sociólogo e economista da Universidade Federal de Mato Groso (UFMT), Maurício Munhoz. Ele pontuou que o fenômeno cresceu após a pandemia e ajudou a sustentar o dinamismo econômico do estado. Para ele, o avanço é positivo, mas exige políticas consistentes de fomento.
"Houve avanços no ambiente burocrático — hoje é mais rápido abrir uma empresa do que há alguns anos. Mas essa melhoria não veio acompanhada da mesma evolução no acesso ao crédito. E o crédito é a alma do empreendedorismo. Sem financiamento, muitas empresas não resistem aos primeiros anos", ressaltou.
Na avaliação de Amanda Alves, analista de Inteligência de Mercado do Sebrae/MT, o salto no número de MEIs teve origem principalmente no empreendedorismo por necessidade, mas consolidou-se com a abertura de novos nichos e a atuação do Sebrae em parceria com o poder público.
Segundo a analista, políticas como a Lei da Liberdade Econômica e o programa Cidades Empreendedoras criaram um ambiente mais favorável à formalização e à competitividade dos pequenos negócios.
Para Munhoz e Amanda, o desafio agora é transformar o impulso inicial em crescimento sustentável — com crédito, inovação e educação empreendedora. O fortalecimento do ecossistema local é visto por ambos como um passo essencial para consolidar Mato Grosso como um polo de empreendedorismo inovador, capaz de diversificar a economia e seguir gerando oportunidades em todas as regiões.