Mais de 40 mil infâncias interrompidas: o desafio de reconstruir vidas após a violência em MT
05/11/2025
(Foto: Reprodução) Mato Grosso tem 33 leis voltadas à proteção de crianças e adolescentes vítimas de crimes
Nem sempre os desenhos das crianças são coloridos, e, muitas vezes, os sonhos dos adolescentes perdem o brilho quando faltam cuidado e proteção. Em Mato Grosso, entre 2020 e 2024, foram registrados mais de 46,3 mil ocorrências policiais envolvendo vítimas menores de 18 anos, segundo dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública de Mato Grosso (Sesp-MT).
Nessa reportagem você vai ver:
Quantidade de casos de violência cometidos contra menores
Ações e estratégias de combate aos abusos
A importância do acolhimento e da proteção
Sinais de que uma criança pode estar sofrendo maus-tratos
O passo a passo da investigação dos casos
Leis que garantem os direitos das crianças e adolescentes
A criação de leis fortalece a proteção de crianças e adolescentes em diferentes áreas
Reprodução / redes sociais
Nos últimos 35 anos, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) criou 33 leis, sendo 70% voltadas à prevenção da violência contra crianças e adolescentes e os outros 30% tratam de ações efetivas, com medidas concretas para garantir os direitos dos menores e fortalecer a política de proteção integral, como mostra o gráfico abaixo:
Entre as leis aprovadas que preveem ações efetivas de proteção a crianças vítimas de violência, algumas se destacam pelo atendimento médico prioritário em ambiente reservado, a garantia de prioridade na matrícula escolar para filhos de mulheres em situação de violência doméstica e a aplicação de sanções administrativas a estabelecimentos envolvidos em casos de exploração sexual infantil. Alguns outros exemplos são:
Leis de proteção à crianças e adolescentes
Fonte: ALMT
Essas leis fortalecem a proteção desse público em diferentes áreas, incluindo prevenção à violência e à exploração sexual (confira no fim da reportagem todas as leis aprovadas em defesa de crianças e adolescentes no estado).
📈Alta nos casos de violência
Apesar dos avanços legislativos e das políticas públicas voltadas à infância e à adolescência, os números mostram que a situação ainda é alarmante em Mato Grosso. Entre 2020 e 2024, o registro de ocorrências envolvendo menores de idade aumentou de 7.930 para 10.594 casos, um crescimento de 33,59% quando comparado os números registrados nesse período.
Além dos dados, especialistas alertam para sinais silenciosos que muitas vezes passam despercebidos dentro de casa e nas escolas. A psicóloga Vanessa Clementino Furtado explica que mudanças repentinas de humor podem ser indícios de que algo está errado.
Quando a criança sofre violência, ela, de repente, começa a ficar mais agressiva e agitada. Mas tudo isso também é um comportamento de medo e insegurança, que pode se manifestar por diversas outras razões. Por isso, é muito importante uma avaliação psicológica
Esse cenário evidencia que, mesmo com leis e programas de proteção em vigor, muitas crianças e adolescentes ainda permanecem vulneráveis à violência, ao abuso e à negligência. A persistência desses casos revela desafios estruturais que precisam ser superados para garantir segurança, acolhimento e o pleno exercício dos direitos de todos.
As estatísticas englobam diferentes tipos de crimes: desde agressões físicas e ameaças até casos de abuso sexual e abandono, e ajudam a compreender a complexidade das situações que atingem crianças e adolescentes no estado. Veja abaixo os 10 crimes mais cometidos e a quantidade de casos registrados contra menores no estado:
As estatísticas reúnem registros de crimes que atingem diretamente vítimas de 0 a 17 anos e incluem situações de violência física, psicológica, sexual e outras formas de violação de direitos.
🔞Combate à violência contra menores
Ao g1, a delegada Mariell Antonini Dias, coordenadora de Enfrentamento à Violência Contra Mulher e Vulneráveis, explicou que, para combater a criminalidade e garantir a proteção de vítimas em diferentes estágios, a Polícia Civil atua em duas frentes: investiga casos de violência contra crianças e adolescentes e realiza ações de prevenção e conscientização em escolas e comunidades. Segundo ela, o objetivo é identificar situações de risco e garantir proteção imediata às vítimas.
“Quando a Polícia Civil recebe uma notificação, uma informação ou denúncia de algum crime cometido contra criança e adolescente, é realizada uma investigação sobre esse fato. Se houver uma situação de risco atual para criança, é possível solicitar uma medida de proteção de forma imediata”, disse.
A atuação preventiva, segundo a delegada, é voltada à educação e à conscientização. Nesse eixo, Mariell informou que o trabalho da polícia busca aproximar policiais de escolas e famílias para falar abertamente sobre abuso, exploração sexual e segurança digital.
Exemplos do que é permitido e o que é proibido na vida de uma criança
Um dos principais exemplos é o projeto “Seja Raio de Luz na Vida de uma Criança e de um Adolescente”, realizado pela Polícia Civil, em parceria com a ALMT, que utiliza uma linguagem acessível e metodologias distintas para crianças, adolescentes e responsáveis, com o objetivo de conscientizar sobre a prevenção de crimes contra menores, além de fortalecer o diálogo dentro das famílias e nas escolas.
“Quando falamos com crianças, usamos uma abordagem lúdica, assim, elas aprendem o que é um toque permitido e um toque criminoso. Já com os adolescentes, a conversa é mais direta, abordando temas como abuso, exploração sexual, compartilhamento de imagens íntimas, os riscos de golpes e como enfrentar esse tipo de situação”, explicou.
Como parte dessa iniciativa, foi desenvolvido o “Semáforo do Toque”, que ajuda crianças e adolescentes a identificar situações de risco e compreender os limites do próprio corpo. A metodologia utiliza as cores do semáforo para ensinar, de forma simples, quando um toque é apropriado, quando deve gerar alerta e quando precisa ser denunciado imediatamente a um adulto de confiança.
🟢Verde (seguro)
🟡Amarelo (atenção)
🔴Vermelho (pare, perigo)
'Semáforo do Toque', recurso da cartilha do projeto Seja Raio de Luz na Vida de uma Criança e de um Adolescente
Polícia Civil de Mato Grosso
🚨Como a polícia atua
Além das ações educativas, o projeto também contempla diferentes formas de escuta especializada, que visam tanto a proteção imediata quanto a prevenção de novas situações de violência. Essas modalidades se dividem nas seguintes oitivas:
Oitiva repressiva (investigativa): envolve a apuração formal de denúncias, coleta de provas e pedidos de medidas protetivas urgentes para garantir a segurança da criança ou adolescente em situação de risco.
Oitiva preventiva (educativa): foca na conscientização e orientação de escolas, famílias e comunidades, buscando prevenir situações de abuso e fortalecer o diálogo sobre o tema.
💝Proteção e acolhimento
Com o aumento constante nos casos, o pico de ocorrências foi registrado entre 2021 e 2022, com um crescimento de 17%. Desde então, o número de casos tem mostrado um aumento mais moderado.
Apesar dos avanços em políticas públicas e na criação de leis voltadas ao tema, os casos ainda preocupam, já que, mesmo com a contenção dos aumentos recentes, novas ocorrências continuam sendo registradas. Veja abaixo a evolução desses casos entre 2020 e 2024.
Diante deste cenário, a defensora pública Cleide Nascimento, membra da Comissão de Promoção e Defesa da Criança e do Adolescente do Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), defende que proteger uma criança vai além de garantir justiça: envolve escuta, acolhimento e reconstrução.
Cleide reforça que esse cuidado precisa alcançar todas as regiões do estado, especialmente o interior, onde a falta de estrutura e de equipes técnicas especializadas ainda é um obstáculo. Segundo ela, o acolhimento deve ir além do processo judicial e precisa envolver toda a rede de proteção, desde a assistência social até a saúde pública.
“São poucos os casos em que a pessoa procura a Defensoria de forma espontânea. Temos conhecimento da violência contra a criança a partir do momento que a família faz o boletim de ocorrência. Aí nós passamos a acompanhar o processo em defesa da vítima”, pontuou.
Entre denúncias que chegam depois do boletim de ocorrência e histórias que muitas vezes se repetem dentro de casa, a Defensoria Pública tem atuado como uma das principais portas de acolhimento às crianças e adolescentes vítimas de violência em Mato Grosso.
“Muitas vezes, como acontece no seio familiar, as pessoas entendem que isso em tese, entre muitas aspas, seria normal. A partir do momento que você tem uma educação e direitos, há uma campanha forte em relação ao que é violência e suas formas, as pessoas se identificam e buscam atendimento”, ressaltou.
📝Entender antes de diagnosticar
Desenho que ilustra uma criança no colo da mãe durante um atendimento com um profissional de acolhimento
Polícia Civil de Mato Grosso
Segundo a psicóloga Vanessa Clementino Furtado, especialista em psicologia socio-histórica, o atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência precisa ir além dos diagnósticos rápidos. Para ela, é essencial compreender as causas e contextos por trás de cada comportamento.
“A automutilação, por exemplo, pode ser uma expressão de violência sofrida. Entender essas nuances é fundamental, porque isso pode levar a situações mais graves, como tentativas de suicídio. Nosso papel é ajudar na elaboração do trauma, para que ele não se transforme em um sofrimento ainda maior”, disse.
De acordo com a psicóloga, antes de qualquer diagnóstico, é fundamental observar atentamente os sinais e o contexto específico de cada criança ou adolescente. Alguns dos principais comportamentos a serem observados incluem retração, medo, agressividade, mudanças no comportamento, fuga e alterações no humor. Além dos sinais, é fundamental prestar atenção a algumas ações que podem ajudar na identificação e no acompanhamento adequado da situação:
Avaliação profissional: o acompanhamento com profissionais especializados pode ser um fator decisivo para um diagnóstico preciso e adequado.
Impacto da violência: os sintomas decorrentes de traumas podem se assemelhar a transtornos ou dificuldades de desenvolvimento atual e futuro.
Abordagem individualizada: cada criança reage de forma única, dependendo da idade, desenvolvimento emocional e experiências vividas.
Cuidado e supervisão: a observação contínua por adultos de referência, especialmente em crianças pequenas, é crucial para identificar e lidar com os sinais de forma adequada.
Vanessa explica ainda que quando um menor é violentado, o impacto não aparece só no corpo, mas também no comportamento, nas emoções e no jeito de se relacionar com o mundo. Cada reação é única, e muitas vezes o que parece um “problema de comportamento” é, na verdade, um pedido de ajuda silencioso.
🎒Da suspeita à ação
Neiva Almeida, que trabalha como conselheira tutelar há oito anos, comenta que a escola tem um papel importante em identificar características que colocam sob suspeita a qualidade do ambiente em que a criança está se desenvolvendo.
Geralmente o primeiro local a constatar uma violação de abuso ou maus-tratos é na escola, pois a criança está ali diariamente. Às vezes é visível a violação pelo comportamento do aluno
Para garantir a segurança da criança, é necessário realizar um processo de verificação que confirme se a suspeita realmente procede. Nesse momento, entra em ação o Conselho Tutelar, que vai:
receber as denúncias,
visitar o ambiente familiar,
notificar os responsáveis sobre a necessidade de comparecimento para a apuração dos fatos.
Após o recebimento da denúncia, o Conselho Tutelar tem o prazo de 24 horas para encaminhar o caso ao Ministério Público, que dará início aos procedimentos cabíveis. Caso seja constatada a violência, as vítimas são:
encaminhadas para a Delegacia Especializada da Mulher, Criança e Idoso do município,
onde será feito o registro do boletim de ocorrência
e é emitida uma medida protetiva contra o agressor para assegurar a integridade da criança.
Em seguida, a criança passa por exame de delito realizado pelo Instituto Médico Legal (IML). Depois, a delegacia encaminha as informações ao Conselho Tutelar, para que o processo de acolhimento seja iniciado por meio do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS).
🤔Mas o que acontece em casos de violência doméstica?
Em casos de violência doméstica onde a mãe também sofre abusos os procedimentos são os mesmos, mudando apenas a instituição onde a família será abrigada. A Liga das Irmãs Ofendidas no Seu Sentimento (LÍRIOS) é uma das instituições competentes por abrigar famílias vítimas de violência, acolhendo a criança, irmãs, a mãe, tias e avós.
Para que a mãe não precise se separar dos filhos, a família é encaminhada a um lar temporário. Essa medida é adotada em situações onde as vítimas não possuem outros parentes no município ou caso a própria família represente um risco à integridade física da criança.
“A criança não pode estar exposta a situações de risco. Se o suspeito tiver conhecimento de onde a criança estuda, certamente ela será transferida de escola ", relatou a conselheira tutelar Amanda Lima.
⚖️A lei como forma de proteção
Uma iniciativa recente, aprovada em abril de 2025, foi a criação do Observatório de Proteção Integral à Infância e Adolescência, que tem como objetivo reunir informações, ouvir diferentes vozes e transformar dados em ações concretas que garantam um futuro mais seguro e acolhedor para quem mais precisa.
A iniciativa, que é de autoria do deputado estadual Dr. João José (MDB), foi aprovada pela Assembleia Legislativa e permite que órgãos públicos, conselhos e a sociedade civil trabalhem lado a lado, acompanhando de perto as políticas voltadas à infância e à juventude.
A ideia desse observatório é criar um diagnóstico estadual, reunir todos os dados possíveis e transformar isso em políticas públicas específicas para as crianças, os adolescentes e suas famílias
Como reforço a esse compromisso, o deputado Eduardo Botelho (União Brasil), destaca que o Legislativo tem papel essencial na criação de leis que amparam crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Para ele, garantir a execução dessas políticas é tão importante quanto aprová-las. Ele cita a criação da Patrulha Henry Borel, fruto de um trabalho conjunto entre a ALMT, o Ministério Público, o Tribunal de Justiça e o Governo do Estado.
Henry Borel, de 4 anos, morreu em março de 2021, no Rio de Janeiro, após sofrer diversas lesões dentro do apartamento onde morava com a mãe, Monique Medeiros, e o padrasto, o ex-vereador Jairo Souza Santos Júnior. Os dois se tornaram réus, acusados de homicídio triplamente qualificado e tortura. A morte da vítima inspirou a criação da Lei Henry Borel, sancionada em 2022, que endurece as punições para casos de violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes e classifica o homicídio de menores de 14 anos como crime hediondo.
“Ela é uma lei que cria condições para que as pessoas possam denunciar e que haja uma atuação rápida nos casos de abuso sexual, estupro e violência contra menores. Todas essas agressões podem ser atendidas por essa patrulha”, explicou Botelho.
O deputado reforça ainda que o combate à violência precisa ir além da punição, passando também pela prevenção e pelo acolhimento, já que, segundo ele, é nas primeiras fases da vida que se constrói a base de uma sociedade mais justa e eficaz, a ponto de romper o ciclo de vulnerabilidade que afeta tantas famílias.
“Proteger as crianças e adolescentes é proteger nosso futuro. Temos que garantir que eles não sejam atraídos pelas drogas ou facções criminosas, e que recebam um tratamento adequado, começando pelas creches”, finalizou.
Partindo desse mesmo ponto, o presidente da ALMT e deputado Max Russi (PSB) enfatiza que o trabalho vai além da criação de leis e envolve também a qualificação de servidores públicos.
“Valorizamos a formação e a capacitação. Por isso, a Escola do Legislativo tem levado conhecimento aos conselheiros tutelares e servidores municipais, para que possam atuar com preparo e sensibilidade. O acolhimento às vítimas começa pela escuta atenta e pelo comprometimento de todos nós”, enfatizou.
Além de aprovar leis voltadas à garantia de direitos e ao enfrentamento da violência, o Parlamento estadual também tem buscado fortalecer a atuação das redes de acolhimento.
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Confira abaixo todas as leis aprovadas no estado em prol da proteção de crianças e adolescentes:
Leis estaduais de proteção à crianças e adolescentes em Mato Grosso (1990 a 2025)
Onde e como denunciar
Polícia Civil de Mato Grosso